segunda-feira, setembro 21

Enquanto há vida...*

Desde as 5h15 de pé, ela preparava o café da manhã, a fim de deixar tudo pronto para o marido que chegara na noite anterior quase meia-noite e mal tivera tempo de jantar. Corria pra lá e pra cá, água fervendo, café no coador, lavava a louça, corria pra dar tempo de estender a roupa no varal antes de colocar o café para coar. Em 20 minutos conseguiu fazer tudo, ajeitou a sala que a filha deixara bagunçada na noite anterior, pois assistiu filmes com o namorado até as mais altas horas da noite antes de despedir-se dele. Garrafa de refrigerante caída no carpete, copos e pratos sujos em cima do sofá, meias jogadas na porta da sala, guarda-chuva ainda molhado da noite anterior e luz da área acesa.

Preparou-se, respirou fundo e coou o café. Enquanto a água descia, tomou um banho de 5 minutos, afinal a conta precisava descer nas cifras, cada vez mais assustadoras. Se vestiu com a primeira roupa que vira, uma calça de mais de 4 anos, uma blusa manchada na manga esquerda e um sapato mal tratado pelo tempo. Ajeitou o cabelo com uma escova e correu para a cozinha. Tomou uma xícara de café sem açúcar, pois era pouco e sua filha não tomaria café sem açúcar. Alcançou as chaves no clavicular e saiu às pressas pro serviço.

Durante pesadas 8h30, quase não parou um segundo sequer além dos 30 minutos que tinha "por direito" pra que almoçasse. Seu chefe lhe pedia: "Sandra, por favor, arrume a mesa de reuniões!", "Sandra, quero o relatório de vendas em minha mesa em 15 minutos. Ligue pro Farias e peça que ele traga isso urgentemente!", "Sandra, solicite o cafezinho pro pessoal da ‘Corpus Ltda.’. Preciso fechar este contrato hoje, é importante que façamos boa imagem!". Dentre os pedidos, alguns "obrigados" e muitos "hoje", "agora", "daqui a pouco"... Foram horas intensas, as pernas já lhe falhavam às ordens e não obedeciam à coordenação motora. Os braços magros e de pele ressecada refinava ainda mais a rotina estafante que lhe abraçava todos os dias, de segunda à sábado. "Boa noite, Sr Andrade!", disse ao sair do escritório com dores nas costas.

Pegou o caminho do ônibus e lá ficou, no frio, durante 25 minutos até o primeiro ônibus passar. Não, não era o dela, e pra piorar, o descuidado motorista com cara de sono e olhos profundos mal a vira no ponto. Passou com os pneus por sobre uma poça d'água que lhe encharcou as calças. Não conseguira nem sequer esboçar reação. Olhou pro ônibus e tudo que viu foi a esperança de ir pra casa se atrasar mais alguns minutos.

Após pegar seu ônibus abafado e lotado, parou na venda da esquina e comprou algumas cebolas e cabeças de alho. Entrou em casa, sua filha lhe reclamou de fome. Deu um beijo na garota e foi ao banheiro lavar as mãos. Sem tempo pra respirar, cortou a cebola, fritou o alho, juntou a cebola, lavou o arroz, acrescentou-o à mistura, jogou água, refogou alguns legumes, fritou 4 bifes que cortara e preparara na noite anterior, espremeu algumas laranjas, pôs a toalha à mesa, organizou 3 pratos na mesa e, enquanto o arroz ficava pronto, tirou a roupa do varal que estendera de manhã. Chamou a filha à mesa, esperou alguns minutos, recepcionou o marido, ajudou-lhe com a roupa e destinou-se, com ele, à mesa junto à filha. Jantou mais rápido que a filha e o marido, levantou, lavou a louça, fez algumas contas com o marido referentes às despesas do mês e foi tomar um banho. Vestiu seu pijama rasgado, deitou-se com o marido e deu-lhe um único beijo. Não tivera tempo de contar que, enquanto trabalhava, soube que seu primo casara-se e nem que o contrato que seu chefe teria fechado era a garantia de seu emprego. "Boa noite" foi tudo que seu corpo lhe permitiu dizer antes de apagar.

Na manhã seguinte, já eram 9h15 e continuava deitada. Não tornou a acordar, mas tinha um sorriso no rosto, de quem sentia-se com algum tipo de missão cumprida. Não parecia lhe fazer mais diferença aquela rotina toda. Agora, de uma forma ou de outra, estava livre, não das pessoas, mas de seu lento e constante "adeus" à vida que sonhara ter quando ainda garota.


* texto de minha autoria

5 comentários:

  1. de uma certa maneira, essa história ecoa aqui.

    muitos cotidianos parecidos a esse, não só o meu, mas de muitas mulheres e homens que eu encontro nele.

    eu acho que a gente quase todo dia se despede de vidas que foram desejadas ou escolhidas para viver outras novas vidas que se multiplicam a partir dos novos encontros, escolhas e de outros desejos que vão se produzindo por aí

    o ine vitá vel

    morrer vivendo


    mas ainda há vida (pulsa), sim, são outras vidas, mas ainda assim,uma vida.

    as belezas dos possíveis.

    adorei a crônica

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  2. a vida existe, porém nao está sendo VIVIDA, e sim passada... conheço...

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  3. Gostei muito, mais uma vez, do seu texto. É de uma sensibilidade atordoante. Mas, fiquei com alguns poréns aqui. Bobeirinhas encanatórias minhas. Depois comento no msn. =)

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  4. ô, postei às 11:11. Horários simétricos são quase mágicos... haha!

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  5. Intenso, porém comum...Repleto do que enxergamos e vivemos todo o dias...Retrato do que sentimos e do que conheçemos pessoalmente, Sensível e realista ao extremo...Como sempre, um ótimo texto!

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