sábado, maio 29

Entre homens e ratos

Estava lá, a roer um pedaço de maçã caída no chão, o pequeno roedor de pelos marrons acinzentados. Corria para um canto escuro, voltava, roía mais um pedaço da maçã e tornava a correr para o canto. Solitário e sujo, seus pelos úmidos, como se tivesse acabado de sair de uma fossa, exalavam um odor desagradável, ainda que distante de mim. Eu fumava lentamente um cigarro velho e amassado que achara minutos antes no bolso da calça. O rato, intrigante, fazia ruídos baixos de sons agudos a cada vez que entrava e saía daquele canto, como se estivesse murmurando algo ou se queixando de qualquer coisa.

Chamou minha atenção a repetição de seus atos. Parecia-me tão sem sentido seu ir e vir que não consegui deixar de observá-lo. Ao passo que os minutos passavam, o dia aproximava-se. Era uma madrugada fria, daquelas em que ao respirar podemos ver o vapor quente de nossa respiração chocando-se ao ar gelado que congela nossos movimentos. Comecei a perceber, com a pouca luz que se apresentava, uma pequena cavidade no canto de um armário de madeira jogado no beco em que eu estava sentado. Eu, ali parado, o rato a roer e correr. O tempo todo. A mesma coisa.

Eis que, em um determinado momento, o susto! Estava observando o buraco do armário e, ao me virar, percebi que ele observava. Deixei cair o cigarro no chão. O rato encarou-me fixamente. Eu não soube exatamente o que pensar. Viria o rato em minha direção a fim de proteger seu espaço do cheiro que meu cigarro espalhava? Teria eu que matá-lo, fugir ou apenas afugentá-lo? Não, nada disso.

O pequenino roedor nada fez, e após alguns segundos largou o pedaço pútrido de maçã, deu duas voltas em torno do mesmo, olhou-me, e parecia dizer: "eu acho que te conheço". Estranho, senti como se o animalzinho me dissesse exatamente isto e respondi, sem pensar e em imediato, em voz alta: "sim!". Assustado com minha voz rouca e grave, ergueu-se sobre as patas traseiras e inclinou-se para frente. Cheirou-me os pés. Eu continuei imóvel. Não quis assustar o bicho, que se virou e foi caminhando, lentamente, rumo ao canto já não tão escuro a essa hora. Retirou-se com um passo lento que parecia outro rato. Fiquei por ali até o dia clarear por completo, talvez a esperar que o familiar roedor tornasse a dar as caras. Mas ele não voltou.

Cheguei em casa e percebi que ainda era domingo. Tipicamente, um domingo - irresistivelmente inútil e apressadamente fugidio. Preocupado com o dia seguinte, passei o dia inteiro a pensar no rato e nada fiz. Uma inércia sem tamanho. Sequer comi, apenas porque não quis, não senti fome, menos ainda vontade. Anoiteceu e, só então, tomei um banho quente antes de deitar-me.

Na segunda, atrasado para o serviço, levantei-me correndo, comi um pedaço de pão, terminei de me arrumar e mordisquei outro pedaço de pão. Trabalhei por incessantes horas. Árduas horas. Ao término do estafante expediente, a passos largos e acelerados, passei em frente ao beco daquela madrugada. Eu, solitário, senti-me observado e olhei para todos os lados, certo de encontrar alguma câmera de segurança ou algum perigo qualquer à espreita. Girei em torno de meu próprio corpo e de minha pasta, que eu repousara sobre o chão com os documentos do trabalho, à procura de alguma coisa. Eis que, quando olhei para o fundo do beco escuro, vi o rato, apenas seus olhos e seu longo rabo anelado, parado, a analisar todos os meus movimentos: meu ir e vir sem sentido, sem rumo, sem objetivo. Apenas um cíclico processo, repetitivo, vulgar e inquestionável. O rato sabia, e agora, sim, eu também sabia. Nós nos conhecíamos, e muito. Afinal, Eu era um rato, ele, um homem.