terça-feira, outubro 6

Na morte do outro, viu a si mesmo*

Fora sentenciado à morte. Seu crime, detonara 4 dinamites no Palácio da Justiça, fugira e deixara mortos para trás: o presidente da corte suprema, um delegado, um advogado e um empresário de terras estrangeiras. Além de alguns feridos.

Aguardava, ansioso, no corredor da morte. Ouvia as vozes da multidão do lado de fora do prédio clamarem por seu nome e a seguir o entoar de "morte ao assassino!". Sabia que não havia razões para resistir, não mais. Era culpado e nada poderia fazer para aliviarem sua sentença, muito menos fazer algo a fim de conseguir provar alguma fictícia inocência.

Tudo já havia sido providenciado. Um homem encapuzado afiava uma machadinha que cortaria a corda. A lâmina da guilhotina brilhava com os raios de sol às 10 horas da manhã de uma cidade costumeiramente fria e nebulosa. Com os braços amarrados às costas, o homem se levanta e tenta enxergar a movimentação lá fora, e eis que chega um jovem senhor, com quatro soldados o acompanhando, encarregado de levá-lo até o palco da guilhotina. No caminho, observa aqueles que o guiam e pensa: "Por sorte, morro ainda hoje". O encarregado lhe pergunta: "O que foi que disse?" e ele percebe que pensava em voz alta e sinaliza um não com a cabeça. Os cinco não compreendem bem o que ele quis dizer, mas entenderam o que foi dito.

Passando em meio à multidão, é recebido por com gritos furiosos e arremessos de pedras e frutas. Sobe ao palco, observa a todos de cima e pede que lhe seja concedido um único pedido, o de falar. Temerosos, mas seguindo as tradições do pensamento moderno de Voltaire, lhe permitem as últimas palavras. O homem estufa o peito e diz:

“Pensais que estou arrependido, pois não estou. Pensais que temo a morte, pois não a temo. Enquanto ouço vossos animalescos berros e recebo vossas ofensas e pedradas, apenas atinjo um estágio que, em vida, sempre me fora negado: o da genuinidade. Sois tão livres que daqui onde estou, mal posso diferenciá-los em vossas vestes sujas, vossos dentes apodrecidos e vossas palavras mal pronunciadas. Não me defenderei, pois estou ciente de que não me restam mais do que minutos e seria em vão resistir a isto. Porém, de uma coisa tenho certeza! Se sou, agora, um homem praticamente morto, o sou pois ousei viver e neguei-me como vós não o fazeis, de aceitar que estes aqui bem vestidos em seus trajes azuis e brancos, fossem meus senhores. Animais, é o que sois. Eternos escravos e nada além. Obedeçam e gritem, apavorados, por minha morte!! É tudo que vos deixaram fazer..."


Antes que prosseguisse seu discurso, uma autoridade local ordenou que, imediatamente, o impedissem de falar mais uma palavra e o prendessem à guilhotina. Sem entender o porquê, o carrasco encapuzado mal conseguia segurar a machadinha e encarou aquele homem, ali, tão vulnerável após proferir suas últimas palavras. O carrasco, tal como o povo que estava extasiado, voltou a si, após uma “perda de consciência” e, arregalando os olhos, cortou a corda que prendia no alto a lâmina. Separada do corpo, já jogado no chão, a cabeça do homem caiu no cesto, e seu rosto voltou-se para cima, como quem olhava para o céu. Um semblante calmo, com um sorriso leve nos lábios era tudo o que se via. O carrasco olhava tudo e, de repente sem entender, sentia a necessidade de largar a machadinha.


* texto de minha autoria

4 comentários:

  1. Nossa, muito bom! Gostei mesmo mano.

    Lacan diz que o assassinato é uma forma de perpetuar o Outro. E o suicídio; matá-lo.

    Isso com certeza deve ter alguma base em Hegel. Mas seu personagem, que me lembrou o Emily Henri, naquele conto publicado pelo Nu-Sol, foi muito astuto do prisioneiro proorcionar um momento de subjetivaçao, convertendo a organização em desordem. A não ser pelo fato de que, provavelmente numa situação real, o ódio contra ele, aumentaria, pois ouvir uma verdade dessas nos faz querer matar o próximo o quanto antes.

    Foucault em Vigiar e Punir, relata suplícios onde o povo tanto apóia os carrascos, como outros onde livram o supliciado de sua sentença. Fica a dica.

    Abraços.

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  2. Não sei o porque, mas me lembrou V de vingança...
    ótimo texto, como todos os outros...Profundo e intenso

    Adorei!
    Beijos

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  3. Ahhh, esse texto eu gostei mesmo! Me lembrou até o final do Estrangeiro do Camus, que ele diz que quer ser recebido em sua sentença com gritos de ódio pelas pessoas... que ele percebera mais uma vez que aquele mundo todo lhe era indiferente e tal.. nooossa, me lembrou mesmo.. hahahaha gostei gostei ^^

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  4. Também me recordou o Estrangeiro do Camus.

    Muito bom texto.

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