sábado, setembro 19

Deixar-se ou puxar a corda*

“Em queda livre, sem saber quando será o impacto ou se conseguirá abrir o paraquedas. Pode ver tudo passar rente a si, em uma velocidade acima do normal. O corpo é leve, mas de certa forma, por isso, pesa-lhe o espírito. Não vê o chão, mas sabe o quão alto esteve. Sem aromas para apreciar enquanto desce, pois o vento no rosto é tão forte que nada lhe fixa ao olfato. Os olhos ardem e mal conseguem ficar abertos, porém se mantêm secos e não se deixam fechar; talvez pela expectativa constante de chegar ao ponto final. Indefinível, apenas como algo que perturba seu sono, a angústia do desamparo divino e a liberdade de puxar a corda do paraquedas constitui a decisão mais amarga. Não é o medo de quebrar-se na queda, nem sequer o de safar-se dela. Mas a impossibilidade de dar um tiro certo por antecipação, de saber o fim, isto é o dissabor, mas é o que constitui seu viver-em-queda. Não se pode prever algo assim, não se sabe qual a sensação que será ao chocar-se no asfalto, nem como será escapar com vida sem maiores estragos, apesar de inegáveis sequelas, mesmo que a curto prazo. Não, e é nesta amarga queda - interminável - que se vê, sem o poder de fazer acontecer a seu modo aquilo que, antes de cair, desejara. Não, não se pode fazer acontecer apenas com o desejar, pois haveria de se combinar com os outros atores pra que tudo saísse direitinho, caso contrário, não há coerência entre o roteiro e a peça. De repente, vê o chão e seus tons de cinza-asfalto quente e acorda, em um susto!, arremessando-se pra cima com a força dos ombros e o coração a mil batimentos... olha ao redor, e no rádio relógio ainda são apenas 3h40 da manhã e no dia seguinte irá trabalhar.”

* texto de minha autoria

4 comentários:

  1. Muito bom!!

    Procure ler um conto que chama "Dois corpos que caem" - nao lembro o autor - tem naquele livro dos 100 melhores contos do século.

    É bem legal tb!!

    ;)

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  2. Puto! Você já tinha que ter assistido La Haine, ou "O ódio" em português... O filma é disparado com uma narrativa:

    "Um homem que se jogava de um prédio, ao sentir seu corpo em queda livre, ia pensando:

    - Até aqui tudo bem

    - Até aqui tudo bem

    - Até aqui tudo bem

    O que é foda é o impacto".

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  3. Muito bom...me lembrou o livro "A queda" de Camus...Fantástico tbm

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  4. Olá!

    Enfim aqui estou!
    Adorei!!!
    Agora já sei quais serão minhas leituras!

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