terça-feira, maio 29

Marcas


O vermelho do sangue em sua calça, sua roupa rasgada, os arranhões em seus braços e rosto, seus dedos ralados, a mão inchada e um corte no lábio. Era impossível esconder as marcas da luta da última noite.

Sem poder voltar pra casa e sem ter mais para onde ir, não encontrou melhor lugar que um banheiro público atrás de um posto médico fechado há meses, abandonado. Lá passou a noite inteira. O frio era forte e os pisos e azulejos só intensificavam ainda mais o inverno rigoroso. Perdera os sapatos lutando. Os pés estavam machucados, foram pisoteados, estavam ralados e tinha hematomas nas pernas. Nunca havia pensado que teria de lutar como lutou.

Enquanto tentava relaxar a cabeça, podia ouvir sons de ratos a andar por aquele banheiro iluminado por apenas uma luz fraca e amarelada. Havia insetos de todo tipo. Baratas, pernilongos, aranhas... Sentia formigas caminharem em sua perna e não conseguia se livrar delas. Mas a noite não era tão assustadora quanto a briga que teve de topar horas antes. Briga na qual matou alguém. Nada era tão assustador quanto a certeza que esta briga perduraria por todo o resto de sua vida, como uma briga interna a fim de entender o porquê passou por tudo aquilo, a briga para tentar livrar-se de alguma "culpa".

Seu nome era Camille, mas sua vida tinha mudado para sempre. Talvez, nunca mais seria Camille, a morena de olhos castanhos brilhantes, sorriso no rosto e andar leve e suave.

A noite passava lentamente, e Camille começava a relaxar o corpo, mas tensionava a mente. As preocupações chegavam com força. Como seria a manhã seguinte? O que deveria fazer? Estaria a polícia ciente de seu crime, de seu assassinato?

O dia começava a nascer e o sol dava as caras ao fundo do horizonte, atrás dos prédios da cidade. O banheiro já não seria seu refúgio. Resolveu sair. Pisou lentamente por aquele chão molhado e sujo, e ao sair, correu para sua casa. Morava sozinha e ao chegar, sem a bolsa, percebeu estar sem as chaves. Pulou o portão e foi até os fundos da casa, onde escondia uma chave reserva da porta da cozinha. Ao entrar em casa, tudo que fez foi correr ao banheiro para um banho. Todo seu corpo doía, suas mãos chegavam a formigar e sentia o couro cabeludo repuxado e ardido. Tomou um banho demorado. Deixou a água escorrer por muito tempo antes de qualquer movimento. Deixou o calor da água massagear seu corpo e esvaziar sua mente. Chorou. Chorou. Saiu do banho, deitou-se e dormiu.

...

Algumas horas depois, a polícia encontrou o corpo de um homem, próximo ao posto de saúde abandonado. Estava sem uma parte do lábio e tinha a cabeça junto ao meio-fio. Morto de olhos abertos, cabelos presos aos dedos e os punhos cerrados. Sua calça estava aberta e suas cuecas arriadas.

- Alguém conseguiu se livrar do desgraçado - disse o cabo da PM Souza Machado.

Tratava-se de um homem procurado por três casos de estupro seguidos de homicídio. Camille seria a próxima. Ela, agora, estava em casa dormindo em sua cama. Mas não estava livre, tampouco se sentia limpa, por mais banhos que tomasse. Seus vizinhos sequer notaram sua falta à noite e ninguém percebeu sua chegada, surrada, durante a manhã. Tornar-se-ia invisível, mas decidiu abrir a boca e gritar sua história.

Ao acordar, foi à delegacia apresentar-se e prestar depoimento. A lei a condenou à prisão por homicídio. E estará marcada para sempre pela violência e pela covardia, do homem e da lei, mas terá sua consciência fortalecida e segura, ao lembrar que resistiu e defendeu a única coisa que lhe pertence e a mais ninguém: sua vida.