quinta-feira, julho 21

O chafariz e a chuva

Banhava-se em um dos muitos chafarizes do centro de São Paulo. Divertia-se com seus irmãos e colegas, chutando água e derrubando uns aos outros. Saía molhado e com cascões nas costas, mas o sorriso marcado no rosto, de orelha a orelha, era muito mais visível. Muitos de seus banhos eram interrompidos com a chegada de um policial parrudo que, aos gritos, os espantava de lá. A garotada toda corria, alguns escorregavam no piso do chafariz, mas ao fim, terminava a algazarra em altas gargalhadas atrás de alguma igreja.

Toda tarde, a mesma coisa. De segunda a segunda, a história se repetia. Às vezes, Neto aproveitava a noite de praça esvaziada para se esquecer na vida, e entorpecer-se mergulhado nas águas do chafariz, sem amigos, sem irmãos, e sem o policial para lhe importunar. Não entendia, aliás, onde diabos se enfiavam a molecada ao fim da tarde de quase todos os dias para aparecerem, de novo, só mesmo na manhã seguinte - quando voltavam.

“Neto!” – acordava assustado aos berros da mãe, que muitas vezes nem o chamava, apenas o empurrava ou lhe metia bofetões nos braços, nas costas e, por vezes, no rosto. Sua mãe desaparecia assim que o enxotava da coberta velha atrás da banca de jornal, na Praça da Sé, e Neto logo sabia que se não chovia, tinha de ir atrás da Catedral a fim de trocados, aproveitando-se do forte movimento de carros, desde cedo. Neto levantava em desespero e sem comer ou tomar sequer um copo de leite ia pedir dinheiro nos faróis. O medo batia se nas primeiras horas não conseguia mais de dez ou quinze reais. Já sabia que se usasse parte desse dinheiro comprando um pão com manteiga e um copo de suco, talvez ao fim do dia o dinheiro acumulado não agradaria sua mãe. Iria apanhar, na certa!

Certa tarde, encontrou a molecada no farol e eles se dispuseram a ajudá-lo, desde que Neto topasse fazer “uma fita” com eles no fim da tarde. Sem saber do que se tratava, hesitou e disse que pensaria, mas aceitou. A tarde foi longa e pouco dinheiro conseguiu, afinal, o tempo estava péssimo: frio e chuva! Era difícil aproximar-se dos carros, isso quando os motoristas abriam o vidro! “Não queriam se molhar”, pensava. Ignorava que, para os motoristas, o carro era o escudo contra a vida social – de tão ofensiva que era. Quando se deu conta, seus amigos sumiram, com todo seu dinheiro... “Uma tarde toda pra nada”. Neto já via a imagem de sua mãe raivosa, os olhos esbugalhados, os punhos fechados e o forte cheiro de cachaça. Olhou ao redor e encontrou ao fundo seus amigos, na esquina com a Avenida Liberdade. Correu ao encontro deles e quase foi atropelado por uma van! Consumido pelo desespero, não se atentou ao atravessar as seis pistas até chegar na João Mendes. Foi por pouco, mas nem percebeu. Gritava o nome dos irmãos, dos amigos, “Lucas! Zé! Piolho!” e nenhum lhe esperava, sequer olhava para trás. Enfim, os alcançou.

Sentia que todos estavam nervosos, ansiosos. A chuva começava a amansar, o ar ficou mais abafado e dos cinco garotos, apenas um não olhava ao redor. Este, que entrou sozinho em um boteco sujo ali mesmo na avenida Liberdade, e tirou de trás do shorts, por baixo da camisa canarinho, uma arma. “Onde ele arrumou isso?” pensou Neto, mas nem tempo teve de perguntar... Piolho gritava com o balconista do bar, um senhor de bigodes brancos e quase sem cabelos, e exigia todo o dinheiro do caixa. Neto não sabia o que fazer: ia embora ou ficava? De repente, um estalo seco seguido de vidros quebrando. Piolhou, nervoso, atirou em algumas garrafas e, assim, apressou o velho balconista. Submerso no temor, Neto entrou no bar, atordoado com o barulho do disparo e se aproximou de uma mesa. Os outros meninos entraram no bar, e eis que, de repente, o mesmo policial parrudo que os espantava do chafariz saiu do banheiro do bar. Saiu com a arma empunhada e apontando na direção certa: onde estavam os garotos, frente ao balconista. Piolho foi o único que não percebeu o policial e continuou aos berros com o velho. Então, num pífio momento de distração, o policial esbarrou em uma das mesas de metal do bar, Piolho virou em sua direção e sem hesitar atirou, sem precisão. O policial atirou a esmo tentando proteger-se. Tiro infeliz. Tiro certeiro. Tiro fatal.

Caiu no chão, sem reação, esbarrando na mesa, o pequeno Neto. Frágil, perdido, seu olhar. Piolho correu, o velho tremia agachado atrás do balcão. Os garotos olhavam Neto no chão. Piolho desapareceu na Avenida Liberdade por detrás da cortina de chuva. O policial chamou o resgate, que tardou a chegar. Anoitecia e o chafariz transbordava. Não foi tempo, ele não aguentou.

Essa noite, um ano se completa desde a última chuva, desde o último banho de Neto. O policial já não mais afugenta os garotos, sequer faz a ronda da região – aquele foi seu primeiro e último disparo. Ninguém mais soube de Piolho. Nunca mais choveu tanto no velho centro paulistano. E nunca mais se banharam no chafariz da praça com tanto prazer quanto Neto se banhava. Desde então, o chafariz está vazio.

Um comentário:

  1. Bruno, esse texto me conquistou, me prendeu a atenção logo nas primeiras linhas, é um texto maravilhoso.

    ResponderExcluir

Sinta-se livre se quiser comentar, criticar, elogiar ou rasgar ofensas!